domingo, 18 de março de 2012

                                         Diálogo inaudível


Iam ambos dentro do carro. Não haviam a muito se conhecido. O suficiente para que se concretizasse um princípio de amizade. Pelo menos, é o que diziam. Ele pra ela, ela pra ele. O trajeto não era consideravelmente longo. Suficiente. Ao menos para que fossem ditas todas as frases arquitetadas por ambos em suas casas há minutos antes. Sabe quando surge um passeio importante, ou mesmo sem importância, mas que adquire tal grandeza devido à companhia? Essa era a situação entre eles. E essa era a volta de tal passeio. Por sinal, muito divertido. Porém incompleto. Diziam ser vergonhosos. Tímidos. Na verdade, eram apaixonados. E medrosos. Pateticamente fracos. E a proximidade do fim da noite à cada segundo se aproximava. Era preciso que tudo fosse pronunciado. E pronunciado em alto e bom som. Sem perda de tempo. Então, repentinamente, decidiram conversar sobre aquilo que tanto os afligia. Ele pensou.


'' Você sabe que a considero de inestimável amizade, uma pessoa apaixonante e bela. E, justamente por essas e pelas tantas outras características que me encantam, creio estar gostando de você além do que acho que poderia.''


Enquanto ele pensava em cada sílaba, construía cada parte do diálogo que pretendia ter, ela também encontrava-se absorta em pensamentos.


'' Não sei bem como lhe dizer isso. Normalmente as meninas demonstram de outras maneiras o que sentem. Mas eu, por acaso do destino, acho que seria prudente lhe falar a verdade aqui e agora. Sua atenção para comigo, e sua sábia doçura fixaram-me a você de uma maneira inelástica. Acho que estou apaixonada.''


Nessa fração de segundos, se olharam. Então, como mandava o figurino, ele tomou a iniciativa e disse o que tanto clamava por ser dito: 


- Acho que vai chover...


Não! Um discurso tão bem feito e é falado sobre a chuva? Ainda mais com um tempo limpo daqueles? Inexplicavelmente, não foi. Então, já que ele não dizia, ela decidiu tomar as rédeas da situação.


- Olha, não acredito que vá chover. Mas, tenho uma coisa a lhe dizer...


Era agora. A hora. Nem dentro nem fora. Ali. Ele corou antes mesmo de ouvir as palavras. Será que era o que pensava ser? Ela prosseguiu:


- Meu avô pediu que levasse um guarda-chuva. E ele nunca falha em suas previsões do tempo. Quem sabe você esteja certo! 


E com o sorriso mais mentiroso já existente, começou a se punir mentalmente. 


''Por que fui falar do meu avô? Por que não lhe disse de uma vez?''


Ele, já aflito com a situação de declaração, desnorteado pelo baque do ''avô'', à todo instante só pensava em desistir. Mas tinha que ser ali. Não iria desistir. Então, novamente, pensou.


'' Sinceramente, chega desse papo furado, o que realmente quero lhe dizer, é que a amo!'' 


Julgou um pouco brusco e assustador demais. Mas, não era hora para desistências, muito menos para eloquências. Enquanto isso, ao mesmo tempo em que ele se encontrava naquela batalha mental, ela reformulava seus dizeres.


''Na verdade, acho que devo ser menos direta. Acho que tenho que deixá-lo perceber por si mesmo. Vou lhe dizer que nunca pensei que conheceria alguém tão interessante. Que faltam homens assim. Talvez ele pesque o peixe e me mostre se realmente está interessado.''


Mas dessa vez, foi ele quem tomou a dianteira:


- Olha, sei que pode soar estranho... Mas eu acho que...


Agora sim. Ufa! Até que enfim os dois apaixonados seriam, quem sabe, um par de namorados. 


- Eu e seu avô erramos. Acabo de me lembrar que ao sair de casa havia visto que seria uma noite quente. Parece que, além de ser ruim como homem do tempo, sou bem esquecido. 


Deu uma leve risada. Mas... POR QUÊ? Não era para ter retomado o assunto do avô! Era a hora da confissão. Do sublime encantamento a dois! Ela esperava pela declaração, e ele me vem com outra repetição. Mas que droga!


''Vou lhe dizer... Chega de falar do meu avô!''


- Chega! A verdade é que...


Sabe quando desviamos o olhar por um breve espaço de tempo? Ela procedeu dessa maneira e, fatidicamente, viu seus olhos refletirem a luz do poste. Aquele... em frente a sua casa. Mas ela ainda tinha tempo, segundos. Já havia iniciado a frase. Era só acabar! Pois então foi o que aconteceu:


- A verdade é que chegamos. Mesmo que chova, ou fique quente, estarei protegida em minha casa. Muito obrigada pelo passeio, viu?


Mas...mas... Como é que pode? O infeliz, enquanto ela proferia tais palavras, pensava em beijá-la sem mais nem menos, à todo instante. Obviamente, só pensava. Entretanto, após aquele viu, tão amigavelmente estúpido proferido por ela, ele não teve dúvidas: era melhor calar-se. Ao mesmo tempo em que ele se calava, ela se chicoteava internamente. Como é que podia ser tão fraca e medrosa? Como isso era possível? E ele se perguntava. Como é que posso ser tão lento? Tão envergonhado e complexado para com meus sentimentos? 


No meio dessa confusão toda de sinapses, o carro parou. Então eles se olharam. Coraram. E aconteceu: se beijaram. Ela o beijou na face direita. Ele a beijou na face esquerda. Aquele velho e conhecido cumprimento amigável. Tchau pra cá, tchau pra lá. E, em uníssono, gritaram ao mesmo tempo. Um grito inaudível. Um berro estritamente pessoal. Mental. 


- Como sou burro/a! 


Três horas depois, se relacionavam como namorados de décadas. O típico sono dos solteiros eternos: recheado de sonhos não concretizados.

terça-feira, 13 de março de 2012

                                             Relato de sadismo


         Indecisão: estado de espírito com uma pitadela de cafeína. Afinal, as noites que se passavam não eram mais como aquelas anteriores, aquelas da infância. Não que ache o passar dos anos razão para insônia. Longe disso. É que, na verdade, é com o envelhecimento que adquirimos os problemas. Aqueles infelizes fatos que prendem as sinapses cerebrais. Aliás, vejo grande semelhança entre o cérebro e os mares bravios. Ondas difusas de pensamentos que confluem em direção ao caos. Você agora pode estar pensando, que este que escreve, trata-se de mais um daqueles depressivos, presos atrás das grades da infelicidade. Engana-se. Sempre dei risadas. Jamais me encontrei absorto na tristeza. Entretanto, esses últimos dias, têm, realmente, atrapalhado o fluxo habitual de minha vida. Darei-me o luxo de voltar um pouco no passado e dizer, a você que lê, o ápice. O topo da insanidade. Esta que, infelizmente, me pertence.
        
        Dez de fevereiro. 10. Uma dezena. Esses dois números, ditos binários, representam  o sucesso em grande parte do planeta. E o meu insucesso.
        Luíza, garota doce e comunicativa, era uma das melhores pessoas que havia encontrado. Talvez por isso que sempre a queria por perto. Para ter a prioridade de seus olhos tão sublimes. Não sou desses que desvalorizam uma mulher. Pelo contrário. Enalteço aquelas que julgo serem merecedoras de enaltecimento. E Luíza, indubitavelmente, era merecedora. Cabelos sedosos. Olhos escuros. Cores da sombra. Um jeito de andar todo singular, e o principal: uma das vozes mais melodiosas que já ouvira. Apenas um único defeito: o poder natural da atração.
       Aquele singelo bater de cordas era o que mais chamava a atenção. Luíza era um sucesso da música. Não da fama. Da música mesmo. Era conhecida apenas no bairro e na escola. Mas era o meu sucesso. Digamos que eu a admirava. Uma admiração desvinculada de moderação. Digamos, novamente, que os que admiram têm os seus delírios. Seus ápices de loucura. Dia dez havia sido o dia.
       Ela estava lá. Na típica roda. O círculo das canções. Da reunião amigável. Ela, o foco das atenções. E eu, observava a distância. Admirava com ostentação. Apreciava banzado. Via aquilo que queria. O belo. E o feio. Era triste ver toda aquela popularidade que esbaldava. E horrenda a possibilidade. Aquela dos sentimentos. Dos sentimentos possíveis entre ela e o garota que esta julgava merecedor de seus olhares enquanto entoava suas desconcertantes canções. Mas, tudo era suposição. Fatos incertos que tiravam-me sal do corpo. Gotas de suor representantes do que é a dúvida. A indecisão das incertezas.
       Infelizmente, quando ostentamos, acabamos convergindo ao fanatismo. À epiderme fria, digna de ser rasgada. A possibilidade da loucura. E Luíza me fez um louco. Me fez ser visto como um louco. No dia dez ela lá estava. No ritual habitual. Nas olhadelas desinibidas àquele garoto insosso. E eu distante. À poucos metros, na verdade. Mas decidido. Decidido a saber a verdade. Era aquele cidadão o responsável pelo furto de minha pérola. Seria a prova real. 
       Em questão de segundos, levantei-me tranquilamente do banco central. O intervalo de espaço entre onde me sentava e onde ela sentava, era curto. A caracterização típica do desesperado, do incriminado, eu não possuía. Estava seco. Sem lágrimas, suor, ou qualquer líquido corporal que me desmascarasse. Afinal, não era um crime. Era a afirmação de uma incerteza. E acredito que, toda incerteza, merece evoluir para a certeza. 
      Um. Dois. Direito. Esquerdo. Um sopro de morte. Uma frase de consolação. ''Acalme-se Luíza. Isso não irá acontecer novamente.'' Livre. Sem peso algum. Risquei-a com a lâmina do que era a minha prova. Depois do corte singelo, focado, anatomicamente cirúrgico, perdi o contato com os olhos de Luíza. Passei a observar o que atormentava-me a tanto. Era óbvio. Se ele ousasse chorar, teria a certeza que o amor havia se consumado entre eles. Se ele tivesse coragem de mostrar-se triste, morto-vivo, concretizaria a evolução de minha certeza. E ele chorou. Gritou. E eu sorri. Um sorriso advindo do ódio. E da confirmação. Um sorriso preso há muito. Um mostrar de dentes com gosto de vitória. Afinal, lá estava a prova. Ele mostrou-me o que há tanto imaginava. A relação entre Luíza e ele havia se iniciado. Contente, absorto na satisfação, me dirigi ao lugar de onde há segundos havia me levantado.
      Me chamo Eduardo. Tenho dezessete anos. E tenho a satisfação, o gozo interior de dizer-lhe: a certeza de minhas intuições, sadicamente, é o remédio que me acalma.