sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

                             Cães humanos. Humanos cães.


Sonho. Engana-se você que pensou tratar-se de um texto sobre aquelas guloseimas que compramos nas padarias. Também não está menos enganado aquele que acreditou tratar-se de palavras sobre essas aspirações que os seres humanos têm na vida. Na verdade, meu desejo real é compartilhar a experiência mental que tive durante meu sono da noite passada.


Eram umas dez, onze horas... Não me lembro ao certo. O que recordo com destreza é que era hora de dormir. Segui meu ritual rotineiro. Banho. Dentes. Escova. Pijama. Cama. Poderia forçar uma oração para engrandecer meu espírito de bom moço perante você que lê. Mas, convenhamos. Religião não é meu forte. Não que não creia em um Deus todo poderoso. Apenas não tenho o costume da reza. Pois bem. Fechara os olhos e confiara em mais uma bela e tranquila noite de sonhos. Ah sim. Minha mente anda sonhadora. Cria, descria. Minhas noites tornaram-se verdadeiros luaus de contos. Confesso não me recordar por inteiro de tal sonho. Confesso, novamente, que preencherei os vazios de minha memória com um pouco de estória. Uma vez mais, confesso... Ah! Chega de confissões. Afinal, você, leitor, não é padre, é? Quem sabe. Que comece meu relato sonífero de sonho.


Eu me encontrava deitado, estirado, em uma calçada. Não muito suja, não muito limpa. Calçada. O movimento era, relativamente, intenso. Ao meu lado, um velho. Desses velhos que você, indubitavelmente, percebe o descaso da vida. Da vida para com ele. Dele para com a vida. Atrás, uma loja de aparelhos domésticos, abastada de dizeres: ''Promoção!'', ''Apenas $!'', blá, blá, blá. Aquelas típicas palavras de marqueteiros. A rua à frente, empesteada de automóveis. Peço licença para questionar o nome automóvel. Que é móvel sim, não há o que discordar. Mas auto? Quantos carros você já viu trafegando sem motorista? Se ainda os veículos tivesses uns dois metros de altura, poderíamos até aceitar um ''altomóvel''. Mas auto? Ah. E quem se importa, não é mesmo? Pois bem. Estava eu, o que me parece, na morada de um mendigo. Tinhas uns cobertores ao meu redor. Entretanto, o engraçado mesmo   foi perceber o que eu tinha. Foucinho ao invés de nariz. Pelos em abundância. Voz que emitia apenas ''Au'', ''Argh'', ''Uhl'', não sei como soa o latido de um cão aos seus ouvidos. E rabo. Era isso o que tinha. Como pode ver, de humano à cachorro. Fiquei maravilhado com a vida de animal. Era simples e fácil. Inveje-me agora. Sabe quando dá aquela vontade tenebrosa, aquele aperto urinário? Pois é, sendo cachorro, isso era o de menos. Postes e mais postes eram meus banheiros privativos. Trabalho? Só se fosse o de acordar os mendigos à lambidas. Estava mil maravilhas. Já começava a gostar da vida de cão. Era fácil. Mas difícil. Pois assim como o sol se esconde para a vinda da lua ou vice-versa, sem mais nem menos, repentinamente algo me atacou. Fome. Sede. Até mesmo uma certa solidão. Afinal, eram tantos transeuntes sem o menor interesse no vira-lata faminto sedento por água. Andava. Aumentava. Parava. Triplicava. Essa é a gangorra de um lado só da fome canina. Comecei a pensar se era mesmo interessante aquele modo de viver. Acabei encontrando umas poças d'água pela rua. Eu, naquele nojo humano ainda presente na mente, hesitei. Cedi. Não há meios de resistir à desidratação. Caminhei um pouco mais e parei. A fome me tomava. E um chute me tocava dizendo ali não ser o meu lugar. Fui percebendo as dificuldades e entendendo a sofridão, quando meu sonho mudou. Sim, sem mais nem menos, tudo se transformara. Era uma espécie de aldeia, comunidade, não sei bem. Garanto que era um ambiente reprovável para se morar. Uma coisa era certa, parecia estar no continente africano, tamanha pobreza. Acabara de ser cão e agora era provavelmente um africano mirrado e fraco. Entretanto, apesar da troca de cenários, percebi que pouca coisa mudava. Ainda sentia fome e sede. Crianças urinavam a céu aberto, já que não haviam postes. Era um ambiente que sofria pelo descaso. O mesmo descaso dos cães de rua. O descaso social! O despertador, ignorantemente entrou em ação. Me retirou o sentimento de agonia que me tomava, contudo seria interessante observar um pouco mais.  Levantei-me. Pensei. Respirei e refleti. Há cães humanos. Há humanos cães. Meu cérebro havia me dado uma lição de moral na noite passada. Então, me vesti e segui minha rotina. Afinal, embora tenhamos tudo aos nossos olhos, não temos nada em nossos atos. E assim a vida prossegue.

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